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OS CONDOMÍNIOS E A LOCAÇÃO POR MEIO DE APLICATIVOS DIGITAIS

Muito provavelmente o caro internauta já tenha ouvido falar na possibilidade de alguém contratar a locação de um imóvel em um condomínio edilício, por curto espaço de tempo, por meio de um aplicativo digital, como por exemplo, o AIRBNB.

Ocorre que os contratos firmados através dessas plataformas têm sido questionados judicialmente por alguns condomínios. Os principais argumentos contrários em debate levantam se seria lícito o condomínio proibir, em suas convenções, essa modalidade locatícia, ainda que visassem garantir a segurança, o sossego e a saúde dos demais condôminos, ou se, caso a proíbam, não estariam restringindo o direito de propriedade dos locadores, e mesmo se a locação passaria a ter natureza não residencial, muito próxima da hospedagem.

A questão está posta em discussão na 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, consoante se tem notícia no bojo do Recurso Especial nº 1819075/RS, sob a relatoria do Ministro Luís Felipe Salomão, o qual proferiu voto no sentido de que é ilícito proibir que o condômino alugue sua unidade condominial por temporada por meio dessas plataformas digitais. Para o Ministro, não há lei que proíba essa prática locatícia e nem há contrato de hospedagem, de cunho mercantil, cujos pressupostos não se fazem presentes, mas, ao revés, temos uma verdadeira locação residencial, restando, assim, prestigiado o direito de propriedade constitucionalmente assegurado aos cidadãos.

Trata-se, até o momento, do único voto proferido no aludido recurso, faltando votar ainda os restantes quatro julgadores turmários em razão do pedido de vista do Ministro Raul Araújo, para o qual os autos foram remetidos, em 04/11/2019.

Desta forma, enquanto a Corte não se posiciona sobre o tema, sugerimos aos condomínios, respeitados os limites da lei, que adotem em suas convenções medidas protetivas em nome da comunidade de condôminos, mas não proibitivas, tampouco discriminatórias em relação a locadores e locatários.

Esperamos voltar ao assunto após a conclusão do julgamento.

CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS AO CONDO-HOTEL SOB A ÓTICA DO PEQUENO INVESTIDOR

 

.José Luís Monteiro Borges

RESUMO: O presente artigo visa a suscitar o debate e a fomentar a crítica dos reflexos dessa novel atividade econômica no campo do Direito, notadamente o impacto da campanha de captação de recursos financeiros perante o investidor sem perfil adequado para esse tipo de investimento, bem como demonstrar os propósitos dissimulados dos empreendedores hoteleiros e apontar os instrumentos jurídicos de tutela dos interesses dos adquirentes de cotas do empreendimento, notadamente os que mais se enquadram na classe dos hipossuficientes, os quais não estão conseguindo remunerar os capitais financeiros que despenderam, porque foram traídos pela expectativa excessiva em torno dos megaeventos esportivos no Brasil, e, em particular, na cidade do Rio de Janeiro, o que, por certo, os levou a descuidar da percepção de algumas armadilhas fáticas existentes no empreendimento, tais como a sazonalidade da taxa de ocupação da rede hoteleira, e também jurídicas nos contratos que celebraram, como a dúvida se ao tema se aplicam ou não as regras mais protetivas a seu favor, encontradas no Código de Defesa do Consumidor.

 

SUMÁRIO: 1. Considerações iniciais. 1.1. Os condo-hotéis e os megaeventos esportivos internacionais no Brasil; os condo-hotéis, em particular, na cidade do Rio de Janeiro. Os os nefandos efeitos da pandemia do coronavírus no setor hoteleiro. 2. A lacuna legal e a importância da intervenção da CVM no tema para regulá-lo em prol dos interesses dos investidores: os prós iniciais e os contras posteriores. 3. A natureza jurídica dos condo-hotéis. 3.1. O mix dos contratos no regime do condo-hotel e o enfrentamento de algumas cláusulas abusivas que neles se contêm. 4. O papel do Código de Defesa do Consumidor na solução dos conflitos de interesse entre os investidores e os empreendedores. 5. Distrato e resolução do contrato. 6. Conclusões.

 

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

 

A relação entre o Direito e a sociedade vem dos primórdios das primeiras leis da civilização. De um lado, o Direito busca regular a malha das complexas relações humanas, fazendo o contraponto necessário com a evolução transformadora e efervescente da vida social. Nem sempre, infelizmente, o Direito consegue promulgar leis consentâneas, no tempo, com as mudanças sociais, gerando, em razão da lentidão da resposta às demandas, um vácuo legislativo no ordenamento jurídico, o que obriga os tribunais brasileiros a atuar, não raramente, substituindo o papel do Poder Legislativo, ante a lacuna legislativa, na criação de modelos de solução de conflitos, passando o juiz (rectius: o tribunal), no afã de pacificar as relações sociais, a exercer competências de outros Poderes.  É o que se passou a chamar de ativismo judicial.[1]

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[1] O Doutor em Teoria e História do Direito e Mestre em Direito do Estado Anderson Vichinkeski Teixeira, em alentado artigo publicado na Revista Direito GV, da FGV, Ed. Jan-Jun 2012, p 048-052, discorrendo sobre o tema, em particular, acerca das perspectivas para o ativismo judicial no Brasil, nos assegura que “a omissão, seja administrativa ou legislativa, do gestor público ou do legislador frente ao dever de dar efetividade à Constituição não pode ser corroborada pela omissão também do Judiciário frente a tal dever. Não se fala aqui em ativismo judicial nocivo, no qual o juiz ultrapassa os limites entre a racionalidade jurídica e a racionalidade política, valendo-se somente desta última”.

No caso específico a que se destina o presente artigo, que visa a considerar as relações contratuais atinentes a esse empreendimento denominado condo-hotel, é notório, na última década, que a partir da escolha do Brasil para sediar a Copa do Mundo de 2014, e a cidade do Rio de Janeiro para promover os Jogos Olímpicos de 2016[2], em um cenário de aquecimento dos vetores econômicos no País, cresceram os olhos dos empresários, em particular, os de hotelaria, cuja atividade necessitava expandir-se para atender à demanda de acomodações para os turistas que viriam assistir esses dois eventos. Despiciendo afirmar que, se não fosse o calendário esportivo em apreço, a cidade do Rio de Janeiro, com suas belezas naturais admiradas e decantadas nos quatro cantos do planeta, por excelência, a cidade do turismo, já teria todas as condições, por si só, de justificar o incremento da disponibilidade de quartos da rede hoteleira.

Com efeito, entre os anos de 2010 e 2012, os empresários do ramo de hotéis e as grandes construtoras uniram esforços para construir novos hotéis, tendo sido a cidade contemplada a partir de então com algumas dezenas de novos empreendimentos de renomadas grifes hoteleiras internacionais[3]

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[2] Em sentido oposto, os defensores puristas dos condo-hotéis procuram acentuar que foi exclusivamente a retração do crédito a grande responsável, no início da década passada, pela engenhosidade criadora do empreendimento.

[3] Dados da pesquisa Hotelaria em Números – Brasil 2012, realizada anualmente pela Jones Lang LaSalle Hotels com a contribuição do FOHB – Fórum de Operadores Hoteleiros do Brasil, in artigo de André Alencar, de 13/12/12, veiculado na Rede Mundial de Computadores.

1.1. OS CONDO-HOTÉIS E OS MEGAEVENTOS INTERNACIONAIS NO BRASIL; A SITUAÇÃO, EM PARTICULAR, NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

Na cidade do Rio de Janeiro, a região mais procurada pelos empreendedores foi, sem sombra de dúvida, a dos bairros-âncora Barra da Tijuca e Recreio dos Bandeirantes[4], nos quais, até o início dos Jogos Olímpicos, havia uma previsão de inaugurarem-se mais 10 mil apartamentos, superando o bairro concorrente de Copacabana, na zona sul da cidade, em razão da sua proximidade com a maior parte das instalações esportivas que foram palco dos Jogos Olímpicos e, por que não dizer, em um segundo plano, pela reconhecida exuberância das suas paisagens de mar e montanha justapostas.

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[4] in Jornal Valor Econômico, de 16/05/2016.

 

Foi na esteira das perspectivas desse cenário que, a partir de 2010, surgiu, pode-se dizer, uma nova concepção de empreendimentos hoteleiros - os condo-hotéis - voltada para a captação da poupança popular em uma época de bons ventos na economia brasileira.

 

Passados os grandes eventos esportivos mundiais, no entanto, os problemas começaram a vir à tona em decorrência da baixa taxa de ocupação dos quartos ofertados ao mercado[5], a despeito da expansão da oferta, fato agravado pelo declínio dos índices da economia brasileira, do crescente endividamento das famílias, da pandemia do coronavírus com seus notórios reflexos negativos na poupança dos cidadãos e da insegurança pública crescente na cidade, sendo, pois, natural o surgimento da onda de insatisfação daqueles que investiram, sem sucesso, as suas poupanças e a consequente busca por soluções no Judiciário, particularmente os pequenos poupadores, cujos perfis nunca se encaixaram nesse tipo de investimento, e, agora, têm a sensação de que o sonho prometido virou um pesadelo sem fim.

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[5] De acordo com a Associação Brasileira da Indústria de Hotéis (ABIH-RJ), a taxa de ocupação média despencou de 79%, em 2011, para 49%, o que é muito expressivo, considerando-se que aquele foi ano da  grande mobilização dos construtores e empreendedores em direção dos eventos que se avizinhavam. Nos tempos pandêmicos de hoje, a sobredita ABIH nacional registrou, em junho de 2020, o fechamento de 95% dos hotéis associados no Brasil, atingidos pela crise financeira gerada pela pandemia do coronavírus, como noticiado pela rede mundial de computadores (in jornal O DIA, edição virtual, de 25/06/20).

 

Definitivamente, a bolha dos hotéis estourou.

Nessa linha de pensamento, como o Direito e a Economia cada vez mais se estreitam nos dias que correm, há que se ressaltar a atividade de condo-hotel tem o caráter eminentemente sazonal e depende sobremaneira do aquecimento dos índices econômicos, ou, especificamente, da ocorrência de grandes acontecimentos turísticos nos locais de sua instalação, que atraiam, principalmente, pessoas de fora da cidade, como também da existência de uma boa infraestrutura de lazer, a oferta de programas culturais no seu entorno e acentuadamente a certeza de que as pessoas em turismo no Rio de Janeiro teriam a garantia do Poder Público de transitar com segurança pelas ruas da cidade, o que não acontece nos dias que correm, muito pelo contrário, uma vez que a cidade, antes “maravilhosa”, infelizmente, está cada vez mais perigosa.

 

Registre-se, particularmente com relação aos hotéis localizados no Recreio dos Bandeirantes[6], a situação é ainda mais grave, uma vez que – e como conhecemos bem a região – o bairro tem como atrativo maior apenas a sua praia, considerada uma das mais limpas da cidade, porém, à noite, os hotéis não podem oferecer a seus hóspedes atividades culturais e de lazer com as quais pudessem se entreter, à míngua de cinemas, teatros, casas de show de nível de bom padrão artístico nas cercanias dos seus maiores condo-hotéis, como são encontrados, por exemplo, em tese, na zona sul da cidade, tendo esses hotéis praticamente se tornado, com o passar dos anos, pouco atraentres,  verdadeiros “elefantes brancos”, com baixa ocupação o ano todo, não gerando lucros para os seus condôminos-investidores, agora como menos mobilidade, ainda, em razão das precauções em se infectarem em aglomerações públicas, por causa do nefando coronavírus em alta circulação na cidade.

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[6]Bairro escolhido como paradigma, por nele residir o articulista.

 

É evidente, destarte, que se essas variáveis econômicas não foram consideradas pelo investidor, a probabilidade de perdas financeiras é praticamente inevitável, com reflexos mais danosos para os pequenos investidores, que, em regra, possuem menor capacidade financeira para investirem em outros segmentos que compensem as perdas nos condo-hotéis, mediante a diversificação em outros ativos financeiros, como fazem os grandes investidores ou os verdadeiros investidores profissionais.

 

É com esses pequenos e desafortunados investidores que o presente artigo se preocupa.

 

2. A LACUNA LEGAL E A IMPORTÂNCIA DA INTERVENÇÃO DA CVM NOS CONDO-HOTÉIS PARA REGULÁ-LO EM PROL DOS INTERESSES DOS INVESTIDORES

Para a compreensão do que vem a ser o condo-hotel, é preciso entender o seu conceito. Trata-se de um empreendimento imobiliário, cujo modelo é um elemento híbrido de condomínio e hotel.

 

Nesse passo, conceitua-se o condo-hotel como o empreendimento imobiliário no qual o empreendedor (em regra uma construtora ou uma incorporadora) se utiliza da captação pública de recursos financeiros no mercado para financiar a construção do prédio em que se dará a exploração da atividade econômica hoteleira contratada, em nada se assemelhando a costumeira aquisição de uma unidade imobiliária para uso ou fruição pelo adquirente.

 

E como o financiamento é captado pela via da oferta pública, em dado momento, preocupada com a “captação irregular de poupança popular”, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), entendendo tratar-se o ativo financeiro de valor mobiliário, em boa hora chamou para si a responsabilidade de regular essa atividade.

 

Com efeito, como dispõe o artigo 2º, inciso IX, da Lei nº 6.385/1976, “são valores mobiliários sujeitos ao regime desta Lei”, entre outros, “quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros”.

 

Assim, a partir do início de atuação do ente regulador, percebeu-se a preocupação em disciplinar o empreendimento, até então fluido, sujeito às práticas dos grandes empreendedores hoteleiros, sendo possível presumir-se que a grande motivação da intervenção da Comissão de Valores Mobiliários deveu-se em muito aos percalços de mercado constatados no notório empreendimento das Fazendas Boi Gordo, décadas atrás, quando milhares de investidores tiveram enormes perdas financeiras em razão dos percalços do insucesso do negócio.

 

Em tese, digna de aplausos a intervenção da Comissão de Valores Mobiliários com o objetivo de regular os condo-hotéis, por certo primacialmente amparar os investidores, em particular, os menores, ainda mais porque não existe uma lei  abrangente, regulando a atividade em comento, tudo a depender das práticas da CVM e das regras escritas da Lei nº 4.591/64, do Código Civil e do Código de Defesa do Consumidor, cujos diplomas podem-se aplicar na resolução dos conflitos ligados ao tema.

 

Nesse sentido, vale destacar a edição da Instrução CVM nº 409/2004, que criou a figura do investidor qualificado.

 

Conforme a referida norma legal, a aquisição de cotas em condo-hotéis destinava-se exclusivamente a investidores (i) que possuíssem, ao menos, R$ 1,5 milhão de patrimônio; ou, alternativamente, (ii) que investissem, ao menos, R$ 1 milhão na Oferta. Percebe-se: investidor com perfil e lastro compatíveis com os riscos do empreendimento. Nada mais salutar, uma vez que os fatores de risco incidentes sobre a oferta e o negócio são grandes, sendo latente a possibilidade do adquirente da cota hoteleira não obter lucro e até amargar prejuízos, bastando para tanto o malogro do empreendimento. Eis aí um dos o porquês de o condo-hotel não ser recomendado, a nosso ver, para investidores “desqualificados” na acepção de suas pequenas economias.

 

Todavia, a postura da Comissão de Valores Mobiliários lamentavelmente mudou, caindo a exigência antes prevista na sobredita Instrução, como decorre da edição das Instruções CVM nº 554 e nº 555, de 17/12/214, que criaram a figura do investidor profissional e não mais condicionaram o investimento ao atendimento dos requisitos da Instrução CVM nº 409/2004, a qual, com todo acerto, referira-se a investidores qualificados, em razão da sua capacidade financeira. Aliás, registre-se que a expressão criada – ‘investidor profissional” – é, por si só, bastante infeliz, uma vez que induz a imaginar-se que se trata daquele investidor contumaz do mercado financeiro.

 

Nesse sentido, em decorrência da Instrução CVM nº 554/2014, diminuíram-se as restrições do público-alvo, de sorte que, pela regra atual, basta o investidor comprovar ser detentor de investimentos com piso mínimo de R$ 1 milhão, podendo adquirir cota condo-hoteleira inferior a esse mesmo valor.

 

Dessarte, se antes havia uma barreira impedindo o acesso de qualquer investidor a um empreendimento de alto risco, a partir das citadas novas Instruções esse filtro caiu, abrindo-se as portas para investidores menos capacitados, financeira e patrimonialmente, mas também não menos hipossuficientes à luz do Código de Defesa do Consumidor. E aí reside a primeira grande armadilha: nem todos conseguiram frear o ímpeto de investir as suas pequenas poupanças em um negócio que, originariamente, sabia-se que não era para eles.

 

Como se vê, a alteração resultou em permitir que os empreendedores hoteleiros conseguissem mais investidores para seus empreendimentos, sem se preocuparem com a sua capacidade de investir, o que, a nosso viso, não deveria ter ocorrido, porque caberia ao órgão fiscalizador preocupar-se com os pequenos investidores.

 

Nesse aspecto, errou o ente regulador, cujo papel da defesa do mercado, principalmente do menos qualificado, fracassou ao permitir qualquer investidor assumir riscos de tamanha envergadura, arriscando as suas economias.

 

Por outro lado, o artigo 1º da Lei nº 6.385/1976, que instituiu a Comissão de Valores Mobiliários – CVM, visa a disciplinar e a fiscalizar, entre outras atividades, consoante o artigo 2º, IX, como visto alhures, “a oferta de quaisquer títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advém do esforço do empreendedor ou de terceiros”, quando ofertados publicamente, como no caso do empreendimento sob exame.

 

Percebam os leitores que, com exceção dos investidores acostumados com as práticas do mercado de títulos e papéis, aliás, estes sim os verdadeiros “investidores profissionais”, há uma quantidade enorme de pessoas, iniciantes ou inexperientes no assunto, que costuma agir por impulsos de momento, seduzidos muitas vezes por maciças campanhas midiáticas, que os arrastam para perdas financeiras quase sempre irreversíveis.

 

No caso específico dos condo-hotéis, como dito acima, havia um grande apelo como pano de fundo, quais sejam dois grandes eventos esportivos-chamarizes: a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, e muito dos que adquiriram cotas em condo-hotéis, por certo convencidos por corretores mal informados ou de má-fé, ou de investidores que não buscaram um sólido aconselhamento jurídico e de mercado financeiro, não se deram conta de que por trás desse cenário havia o aspecto da sazonalidade do empreendimento, mergulhada em um quadro crescente de declínio das variáveis da economia brasileira. Para agravar, não contavam com o surgimento da pandemia e, é inequívoco, na cidade do Rio de Janeiro, há que se considerar o aumento da insegurança pública e dos índices de criminalidade, o que, não se pode negar, atua com fator desestimulante para a vinda de muitos visitantes-hóspedes, ou seja, variáveis previsíveis e imprevisíveis perfeitas para os empreendedores condo-hoteleiros amargarem prejuízos financeiros acumulados, e mais, sem perspectivas a curto prazo, a solução é livrarem-se de seus quartos, ao menos que seja para não agravarem o prejuízo.

 

3. A NATUREZA JURÍDICA DOS CONDO-HOTÉIS

 

Como já se disse, o empreendimento condo-hotel não é um negócio jurídico típico, com o qual estávamos acostumados a lidar, como o da compra e venda de um bem imóvel para moradia, que possibilita a seu comprador exercer as faculdades de uso, gozo e fruição inerentes ao direito de propriedade.

 

Ao revés, cuida-se de um empreendimento imobiliário no qual alguém adquire uma cota ideal de um quarto de hotel, sem que se configure o direito de usar (com raríssima exceção prevista em alguns contratos), inerente ao instituto da propriedade. Registre-se, contudo, que já vimos contratos em que o empreendedor faculta ao investidor usar uma vez a unidade adquirida, geralmente na chamada baixa temporada.

 

Quem adquire cota em condo-hotel tem o direito de receber remuneração decorrente dos eventuais resultados operacionais do empreendimento, observada a proporção dos percentuais investidos, resultados esses sujeitos aos azares da administração hoteleira por terceiros contratados pelo empreendedor para essa finalidade, o que nos levaria a concluir primo ictu oculi que o contrato em apreço teria natureza societária.

 

Nesse particular, e aqui registramos uma segunda crítica ao empreendimento[7] em análise – temos observado isto com constância na nossa prática profissional - é a pequena ou quase nenhuma margem de ingerência do investidor na consecução dos objetivos do seu investimento - o lucro – não sendo raros os casos em que a própria fiscalização da gestão da atividade hoteleira é dificultada pelo empreendedor, ou seja, a consecução do lucro depende da boa gestão da atividade hoteleira, que o empreendedor do negócio confia a terceiros, em regra empresas com propalada expertise em administrar hotéis, e a falta de transparência na prestação de contas a que está obrigado. 

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[7]As críticas contidas nesse opúsculo baseiam-se principalmente na chamada “experiência de campo” com a qual convivemos em nossa atividade advocatícia.

 

Essa faceta põe em xeque a natureza societária do empreendimento, uma vez que não se pode conceber, tratando-se de sociedade intuitu personae, a existência um sócio em uma atividade na qual não pode interferir nos rumos do empreendimento e nos meios para alcançá-lo.

 

Como se observa, trata-se de empreendimento complexo, para poucos, pois o êxito do negócio e os lucros esperados dependem de um conjunto de fatores, na grande maioria das vezes, totalmente ignorados pelos investidores, ou completamente mal analisados e dimensionados na origem, especialmente por aqueles não habituados a lidar com o mercado de capitais.

 

Some-se a isso muitas vezes, a falta de informação adequada, por parte dos empreendedores, detonando as armadilhas da aquisição da cota condo-hoteleira, o que torna o risco potencializado[8].

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[8] O artigo 3º, III, da Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) impõe o dever de informar adequadamente ao consumidor sobre aquilo que adquire, estando o dono do empreendimento hoteleiro sujeito a essa regra positiva perante qualquer adquirente de cota hoteleira.

 

Não é nenhuma demasia, assim, afirmar-se que o aquele que adquire uma simples cota em um condo-hotel adquire uma “caixinha de surpresa”, envolta em uma gama de incertezas, que, até pelo seu ineditismo no Brasil, ousamos afirmar, são muito superiores àquelas das aplicações tradicionais do mercado de capitais brasileiro.

3.1. O MIX DOS CONTRATOS NOS CONDO-HOTÉIS E ALGUMAS CLÁUSULAS ABUSIVAS QUE ELES CONTÊM

 

Ao adquirir cota em condo-hotel, o investidor assina um conjunto de instrumentos, além de declarações de grande importância, que a praxe cotidiana revela serem desconhecidos da grande maioria de investidores, mas nem por isso irrelevantes.

 

Exemplo disso é a denominada declaração de condição de investidor qualificado, nos casos de aquisição de cota anteriores à edição das Instruções Normativas nºs 554 e 555, de 2014, ou de investidor profissional após o advento de tais Instruções, verdadeira “sentença de morte” para o investidor menos avisado, que só poderá ser mitigada se se pudesse admitir, sem restrições, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor em socorro do adquirente de cota hipossuficiente.

 

Em regra, a via crucis do investidor não qualificado começa pela celebração de uma promessa de compra e venda, em caráter irrevogável e irretratável, de fração de terreno vinculada à implantação de empreendimento hoteleiro, na qual atribui-se um número corresponde à cota ou às cotas adquiridas, identificando-se o empreendimento hoteleiro a ser construído, ou já construído.

 

Esses contratos, no então, possuem algumas cláusulas lesivas para os adquirentes de apartamentos em condo-hotel.

 

Chama-nos a atenção que alguns compromissos de compra e venda contêm cláusula-mandato por meio da qual o promitente comprador confere ao promitente vendedor uma gama de poderes, que possivelmente nem ele deva saber o que está outorgando; outras há onde se lê a vedação expressa de o promitente comprador alienar os direitos aquisitivos da fração ideal adquirida, sem a prévia e expressa anuência do empreendedor, e até aquelas que impeçam o promitente comprador de registrar o seu  título aquisitivo no Registro Geral de Imóveis.

 

Consigne-se, quanto à primeira abusividade, que, conquanto o próprio STJ tenha decidido sobre a licitude da cláusula-mandato, a abusividade não está na cláusula em si, mas no fato da omissão de o empreendedor-mandatário, ou de quem lhe faça a função perante o adquirente, em prestar contas da sua atividade, o que, não raro, transborda em ações de exigir contas (arts. 550 a 553, do CPC); quanto à segunda abusividade, temos que o normal seria apenas o adquirente da cota condominial, em caso de alienação, oferecer que os demais condôminos exerçam o seu direito de preferência, daí podermos afirmar da natureza jurídica condominial do empreendimento.

 

Uma outra cláusula de índole questionável para os adquirentes de cotas em condo-hotel é aquela em que o promitente comprador confere poderes ao empreendedor para representá-lo nas assembleias gerais para a prática de  “quaisquer atos” em seu nome. É de convir-se, um grande absurdo. Conquanto o mandatário esteja obrigado a prestar contas ao mandante, sabe-se que, na prática, se o investidor não se interessa em comparecer a uma assembleia, por certo nunca pedirá esclarecimentos ao mandatário para apurar que ato foi praticado por ele, em seu nome, em determinada assembleia. E quando comparece, pessoalmente, ou representado por procurador, nem sempre consegue, na maioria das vezes, esclarecer as suas dúvidas, como anotamos em diversas assembleias em que comparecemos como procurador de cotistas condo-hoteleiros.

 

Vemos nisso uma forma de o empreendedor manter o controle absoluto de tudo relacionado ao empreendimento, de ter as “rédeas curtas” na mão e manter o andamento da gestão do negócio sob o seu exclusivo controle e sob o pálio de uma aparência de normalidade, bem assim ter prontas ações para inibir ou impedir os questionamentos por parte dos investidores, o que, convenhamos, rompe a boa-fé que deveria permear a relação jurídica contratual.

 

Pois bem. Uma vez prometida adquirir a fração ideal a que se refere a cota, o investidor assina também um contrato de construção do prédio no qual o empreendimento irá funcionar. Note-se ser comum que esse contrato seja assinado com um construtor do mesmo grupo que prometeu vender a cota, mas não o próprio vendedor, o que, talvez, nem seja notado pelo pequeno investidor.  E, como se pode perceber, em uma operação originária, em que o empreendedor capta recursos financeiros perante o público para construir as instalações do empreendimento imobiliário em comento, tem-se a aquisição de uma res sperata, condicionada à entrega futura de fração ideal de bem imóvel, sujeitando-se os promitentes compradores aos azares da conclusão ou não da obra, ou mesmo a sua conclusão a destempo.

 

O investidor celebra também um contrato de sociedade em conta de participação[9] no qual adere obrigatoriamente ao empreendimento e vincula a fração ideal adquirida ao empreendimento, assumindo, a partir de então, os ônus e os bônus dos resultados do empreendimento hoteleiro, na qualidade de “sócio participante”, ultimando-se a cadeia de instrumentos contratuais conexos formadores do condo-hotel.

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[9] Para Fábio Ulhoa Coelho “a conta de participação se constitui da seguinte forma: um empreendedor (sócio ostensivo) associa-se a investidores (os sócios participantes) para a exploração de uma atividade econômica. O primeiro realiza todos os negócios ligados à atividade, em seu próprio nome, respondendo por eles de forma pessoal e ilimitada”, in Curso de Direito Comercial, vol. II, 5ª ed., São Paulo, Saraiva, 2002, p. 476.

 

Causa-nos, porém, intensa aversão admitir a existência de uma sociedade em conta de participação, uma vez não encontrarmos em sua essência a affectio societatis. Os “sócios participantes” não se conhecem minimamente entre si, tampouco o “sócio ostensivo”, que detém a expertise do negócio e a quem compete a gestão do negócio.  É possível, pois, que se desnature a rotulagem da suposta sociedade, que pende mais para um contrato de investimento, atípico, do que para qualquer outra coisa.

 

É certo, muitos contratos genuinamente dessa natureza jurídica existem no mercado imobiliário, mas em tais situações, ao revés do que acontece nos condo-hotéis, os verdadeiros sócios participantes guardam o mínimo necessário de proximidade pessoal e têm a possibilidade de controlar a gestão do sócio ostensivo.

 

Assim sendo, como tal não ocorre nos condo-hotéis, pode-se afirmar que o denominado contrato de sociedade em conta de participação é tudo, menos uma conta de participação condo-hoteleira.

 

A ausência da affectio societatis, porém, não passou despercebida do Poder Judiciário.

 

Com efeito, ao julgar a apelação cível nº 253.891-4/0-00, a Oitava Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu de maneira lapidar[10] que “não obstante o instrumento firmado pelas partes receba a denominação de “Contrato de Constituição de Sociedade em Conta de Participação”, patente que a relação jurídica subjacente representa uma verdadeira promessa de venda de imóvel mediante oferta pública e recebimento antecipado de dividendos para entrega futura de bem imóvel”.

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[10] Julgamento unânime, de 11/03/2009, conforme sítio eletrônico do TJSP.

 

A decisão em testilha ainda foi ainda mais dura com o empreendedor hoteleiro, que sucumbiu, ao asseverar textualmente ser “flagrante a violação à Lei nº 5.768/71 praticada pela apelada – sócia ostensiva”, reconhecendo no caso concreto citado “a fraude ao ordenamento jurídico” e impondo a nulidade do negócio jurídico subsumido ao julgamento em questão, uma vez destinado a fraudar o artigo 53, do Código de Defesa do Consumidor.

 

E o suporte jurídico das razões de decidir o caso concreto foi precipuamente a ausência do principal requisito de uma sociedade em conta de participação, qual seja a affectio societatis, o que autorizou o órgão judicial desnaturar o contrato rotulado, com esperteza aparente do empreendedor, como em conta de participação.

 

Nessa linha do raciocínio jurídico, comungamos com a assertiva de ser “correto afirmar que este tipo de engenharia corresponde, na realidade, a uma incorporação mascarada, engendrada com o fito de eximir o construtor das responsabilidades, obrigações e custos previstos na Lei nº 4.591/64 (Lei de Incorporação), do mesmo modo que corresponde a uma leviana tentativa de excluir as diversas garantias previstas no Código de Defesa do Consumidor em favor dos “quotistas” ou “sócios participantes”.

 

Não bastasse esses contratos conterem um forte carga de incerteza quanto aos resultados imaginados, qual seja a de ser ou não remunerado pelas forças do empreendimento, podendo haver lucros ou prejuízos, que é o que vem ocorrendo com os empreendimentos condo-hotéis, em regra, na cidade do Rio de Janeiro, eis que um desses contratos – o denominado impropriamente de sociedade em conta de participação – já nasce para o mundo jurídico eivado de vício, que o inquina de nulidade, tanto pelas regras consumeristas, quanto pela ótica do artigo 122, do Código Civil.

 

É possível que nesse momento, o investidor, em especial, repete-se, o pequeno investidor, venha se dar conta do mal negócio que realizou.

 

Começa a partir daí a busca das soluções, que podem advir da proposta de um distrato, em regra extremamente difícil, porque dependerá sempre da anuência do empreendedor, ou pela resolução do contrato pela via judicial, como se verá mais adiante, quando, então, reacende-se a discussão, que abordaremos, se o pôr fim à relação contratual será regido pelo Código Civil, ou pelo Código de Defesa do Consumidor.

 

4. O PAPEL DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR NA SOLUÇÃO DOS CONFLITOS ENTRE OS INVESTIDORES E OS EMPREENDEDORES NOS CONDO-HOTÉIS.

 

4.1. A JURISPRUDÊNCIA

 

A primeira pergunta que o signatário deste artigo fez para si mesmo, ao travar, contato inicial com o tema tratado nessa oportunidade foi: sob qual diploma legal são resolvidos os conflitos ligados ao condo-hotel? O Código Civil, a Lei nº 4.591/64, que disciplina as incorporações imobiliárias, ou o Código de Defesa do Consumidor, ou os três, sob o pálio do “diálogo das fontes”, sem primazia de um ou de outro, dependendo do enfoque do conflito de interesses a desafiar a manifestação do Poder Judiciário?

 

Recapitule-se o que se disse acima. O novel tema condo-hotel não é um empreendimento, cujo instituto de direito imobiliário disciplinado ainda por uma lei especial, o que seria desejável a esta altura[11]. Como natural em sociedade, as novas relações puramente fáticas antecedem o ordenamento jurídico ao qual passarão, em algum momento futuro, ser afetas, como nos legou a tradição romana no brocardo ex facto oritur ius.

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[11] Sobre este ponto, foi motivo de júbilo para este articulista saber que o renomado jurista Melhim Namem Chalhub, nome de escol do Direito Imobiliário Brasileiro, comungou da nossa mesma ideia, ao ensejo da palestra “O distrato como direito (?): controvérsias e jurisprudência“, promovida pela Comissão de Direito Imobiliário da OAB-RJ, Seção Barra da Tijuca, em 20/02/2018, na qual compartilhamos a mesa de palestrantes com o talentoso Dr. Carlos Gabriel Feijó de Lima, na ocasião medidador da nossa dicção na qualidade de membro da citada Comissão.

 

Mas, afinal, seria o adquirente de uma única cota em condo-hotel um consumidor, podendo lançar mão do código consumerista para reequilibrar a relação de consumo?

 

Para a resposta a essa e a outras perguntas afins, considerando-se a lacuna  decorrente da inexistência de um diploma legal próprio, os operadores do direito têm que lançar mão de construção doutrinário-jurisprudencial, e, por que não, ousar na criação inovadora das soluções.

 

Antes de tudo, consigne-se que a jurisprudência do nosso tribunal estadual ainda é rarefeita em tema de condo-hotéis, tanto quanto não o é a jurisprudência paulista, embora tenhamos conhecimento da existência de dezenas de ações tramitando nas Varas Regionais de Jacarepaguá e da Barra da Tijuca, na cidade do Rio de Janeiro, redutos naturais dos maiores empreendimentos de condo-hotéis da cidade e de muitas sedes das empresas empreendedoras, atraindo a competência funcional desses juízos[12].

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[12] Confiram-se, para exemplificar, a referência a alguns processos em andamento sobre o tema: (i) 1ª Vara Cível Regional da Barra da Tijuca – proc. nº 0040.427-33.2016.8.19.0209 – Alex Coelho Sucena Cardozo e outra x Atlantis RJ Empreendimentos Imobiliários Ltda..; (iii) 4ª Vara Cível da Regional Barra da Tijuca – proc. nº 0029583-58.2015.8.19.0209 – Alan Palheta Sant’Anna x C11 Empreendimentos Imobiliários Ltda. e outros; (iv) 6ª Vara Cível Regional de Jacarepaguá  - proc. nº 0033478-90.2016.8.19.0209, originariamente ajuizado na 6ª Vara Cível Regional da Barra da Tijuca – Marcus Valerius Teixeira Xavier e outro x C11 Empreendimentos Imobiliários Ltda.; (v) Carlos Alberto Veiga Rodrigues e outra x Atlantis RJ Empreendimentos Imobiliários Ltda.

Vejamos a questão com mais detalhes. O Órgão Especial[13] do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em 2015,  exarou o Enunciado nº 84, consubstanciado na publicação do Aviso TJ nº 15/2015, segundo o qual não competia às Câmaras do Consumidor o julgamento de demandas, “que versem sobre o compromisso de compra e venda firmado entre particular e incorporadora para aquisição de unidade hoteleira em empreendimento destinado à exploração de atividade empresarial de hotelaria”.

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[13] in Conflito de Competência nº 002469-58.2016.8.19.0000, Rel. Des. Nagib Slaibi Filho, j. 16/06/16.

 

Embora esse Enunciado tenha caído em desuso, em razão de as Câmaras do Consumidor terem deixado de existir a partir de 2017, no Estado do Rio de Janeiro, desse entendimento, com as vênias cabíveis, sempre discordamos em nossos arrazoados.

 

Entre os argumentos que defendíamos, sempre frisávamos que o teor do Enunciado em testilha não era vinculante, de modo a aplicar-se indistintamente a todos os casos amparados pelo Código de Defesa do Consumidor. Ainda que o referido tribunal tenha exarado o referido Enunciado lastreado em julgados que não tenham reconhecido a existência de relação de consumo nos contratos que tais, forte no esteio da teoria finalística do codex consumerista, não se pode fazer “tabula rasa” dos vícios existentes em muitas cláusulas dos contratos informativos do instituto condo-hotel, grande parte delas abusivas, o que, entretanto não deveria vedar o julgamento de tais ações por uma câmara cível genérica, não especializada. Ademais, a nosso viso, o Enunciado nº 84 teve um viés de política jurisprudencial para frear a avalanche de recursos às câmaras consumeristas, as quais, em menor número, se viam assoberbadas de trabalho em relação às câmaras cíveis genéricas.

 

O nó górdio do tema, que ainda subsiste mesmo após a dissolução das câmaras especializadas de consumo, prende-se ao fato de que não haveria nos condo-hotéis uma relação de consumo a ser tutelada pelo Código de Defesa do Consumidor, eis que, a viso dos empreendedores, a cota não é adquirida para uso próprio, mas sim para obter lucro através do valor cobrado pelo empreendimento hoteleiro, sob o fundamento de que as incorporadoras não estão na posição de fornecedores, à luz do artigo 3º do citado código, por isso que defendem.

 

 Além disso, os arautos da não aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor em tema condo-hotel aferram-se ao fundamento baseado no artigo 2º do Código de Defesa do Consumidor, que adotou a Teoria Finalística ou Econômica. Segundo eles, os adquirentes de cotas não utilizam o bem para uso próprio, mas, na qualidade de investidores visam à obtenção de uma remuneração do capital aplicado na aquisição.

 

Para essa corrente do pensamento, na solução dos conflitos ligados ao tema em discussão é de se aplicar, de forma sobranceira, a Lei nº 4.591/64, que rege as incorporações imobiliárias, versando especificamente sobre os condomínios e as incorporações a preço de custo.

 

A despeito da pretoriana mencionada e de entendimentos doutrinários opostos, entre os quais a lição do magnânimo Melhim Namem Chalhub[14], para exemplificar, temos ser possível o investidor condo-hoteleiro prejudicado socorrer-se do Código de Defesa do Consumidor sempre que se deparar com cláusulas abusivas insertas nos diversos contratos que compõem o “kit” de instrumentos do instituto em suas aquisições, ou quando demonstrarem a sua hipossuficiência no momento de contratar a aquisição de cota condo-hoteleira.

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[14] in Incorporação Imobiliária, 4ª edição, Forense, 2017, p. 17.

 

Neste sentido, gostaríamos de enfrentar a questão, alinhando alguns argumentos para melhor reflexão doutrinária. Não nos parece razoável permitir a aplicação, “a ferro e fogo” de uma teoria em detrimento da abusividade de inúmeras cláusulas insertas nos instrumentos contratuais dos condo-hotéis, inibindo os adquirentes de cotas condo-hoteleiras de se utilizarem dos instrumentos existentes no Código de Defesa do Consumidor.

 

De outro giro, não podemos perder de vista que o contrato de promessa de compra e venda de cota de condo-hotel, o primeiro da sequência lógica do mix de instrumentos contratuais que o investidor assina ao concretizar a aquisição da fração ideal, é, por excelência, um contrato de adesão.

 

Lembremo-nos da lição de Ripert, aprendida nos nossos primeiros ensinamentos universitários, o qual costumava referir-se ao contrato de adesão como sendo “adesão não é consentimento. Consentir num contrato é debater as suas cláusulas com a outra parte depois duma luta mais ou menos dura, cuja convenção traduzirá as alternativas. Aderir é submeter-se ao contrato, estabelecido e submeter a sua vontade, protestando no íntimo contra a dura lei que lhe é imposta“[15], mas bem o sabem os operadores do direito que um contrato de adesão é mais do que um contrato padronizado apresentado por uma das partes à outra, no qual o aderente não tem margem para propor algo e negociar com a outra parte.

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[15] Tradução livre do excerto tirado da obra do jurista francês denominada “La régle morale dans les obligations civiles”, p. 102, cuja citação é encontrada no suculento ensaio “A Nova Ordem Constitucional: pós-modernidade, contratos de adesão, condições gerais de contratação, contratos relacionados e redes contratuais”, in Revista do Direito do Consumidor, vol. 58, RT, p. 195, de autoria do Prof. Rogério Zuel Gomes, para quem, nos contratos de adesão, “o negócio jurídico é celebrado na base do ‘pegar ou largar’.

 

 O que caracteriza essencialmente a adesibilidade do aderente é a inexistência de alternativa de contratar, em função da especificação ou peculiaridade do objeto do contrato. Não há escolha no mercado para o aderente, caso recuse o contrato que se lhe apresenta. É aquele ou nenhum. No caso dos condo-hotéis, ainda que exista competitividade no setor imobiliário, sendo diversos os incorporadores, em essência, a maneira de contratar é sempre igual, variando, para mais ou para menos, apenas os aspectos literais dos contratos, os quais, em regra geral, adotam a mesma estrutura.

 

Sabe-se, por outro lado, que em contratos dessa natureza é latente a hipossuficIência do aderente e que, o mais relevante, ainda, na quase totalidade dos casos, premidos pela nossa cultura empresarial, o empreendedor se furta ao dever de prestar todas as informações sobre o produto ou serviço, como determina o artigo 6º, III, do Código de Defesa do Consumidor, podendo até fazê-lo mal, entendendo-se aquelas que permitam ao investidor conhecer o negócio em sua inteireza para poder avaliar conscientemente, in casu, todos os riscos que vai assumir ao contratar, em especial a possibilidade de perder o que investiu.

 

Sem falar das cláusulas abusivas. Há hipóteses em que as promessas de compra e venda vedam expressamente o registro imobiliário por parte do promitente comprador, cerceando-lhe o direito real de aquisição, outras em que lhe são impostas cláusulas de arbitragem para discussão do contrato, desafiando a sua declaração de nulidade.

 

Como, então, deslocar a relação entre as partes para a lei das incorporações imobiliárias, ou mesmo o Código Civil, deixando à margem a lei consumerista dos hipossuficientes e impedindo-lhes extirpar cláusulas abusivas em seus contratos?

 

Não se deve perder de vista o que se demonstrou alhures. O Poder Judiciário de São Paulo, na vanguarda da produção jurisprudencial voltada para o tema, já se manifestou sobre a forma “travestida” do negócio, por parte dos empreendedores, os quais, para escaparem dos deveres e ônus impostos pela lei das incorporações, engendraram criativamente o complexo negócio do condo-hotel.  Com efeito, percebe-se a gritante contradição dos empreendedores, que, por comodidade ou conveniência, se escudam em suas defesas na própria lei que maquiaram quando redigiram os instrumentos jurídicos do negócio.  

 

Em sede rarefeita de julgados sobre o tema em comento, vislumbra-se, contudo, o benfazejo e ainda mais recente julgado do E. Superior Tribunal de Justiça, cuja Corte, por sua Terceira Turma, sob a relatoria do Min. Rel. Ricardo Vilas Bôas Cueva, decidiu ser possível a aplicação do Código de Defesa do Consumidor, “com base na teoria finalista mitigada” quando “o adquirente de unidade imobiliária, mesmo não sendo o destinatário do bem e apenas possuindo o intuito de investir ou auferir lucro, poderá encontrar abrigo da legislação consumerista se tiver agido de boa-fé e não detiver conhecimentos de mercado imobiliário nem expertise em incorporação, construção e venda de imóveis, sendo, pois, evidente a sua vulnerabilidade.”[16].

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[16]Confira-se o inteiro teor do REsp nº 1.785.802-SP, j. de 19/02/19.

 

Registre-se, no entanto, que em que pese os pequenos investidores em condo-hotéis poderem socorrer-se do Código de Defesa do Consumidor, como reconheceu o  E. STJ, a nosso viso, haverá casos, em particular dos grandes investidores, isto é, aqueles que adquiriram muitas cotas condo-hoteleiras, que farão valer-se apenas do Código Civil para discutir, por opção, o contrato de sociedade em conta de participação, regido pelo artigo 996, do Código Civil.

 

É o que se dá, por exemplo, com o investidor que exige a prestação de contas do empreendedor para promover um acertamento das quantias que lhe são cobradas, para adequá-las aos contratos celebrados, sem interessar-se por distratar ou resolver o contrato e sair do empreendimento.

           

Como se vê, avulta de importância o papel da jurisprudência dos nossos Tribunais, frise-se, ainda escassa com relação especificamente ao instituto em apreço, uma vez que somente após os grandes eventos esportivos que, recentemente, alavancaram o empreendimento é que os investidores se deram conta de terem investido em um ativo financeiro com alto grau de incerteza, sem que os empreendedores tenham-lhes dado a conhecer todas as variantes econômicas a que o negócio, já na origem, estava exposto, dando azo à busca de soluções judiciais, esperando-se que o Superior Tribunal de Justiça venha um dia ampliar o espectro da aplicabilidade do código consumerista em prol dos pequenos investidores.

 

5. DISTRATO E RESOLUÇÃO DO CONTRATO

 

Muito temos ouvido da insatisfação de investidores – mais ainda dos pequenos investidores – com relação aos maus resultados das atividades hoteleiras, exploradas sob o regime de condo-hotéis, que permeiam entre a má gestão do negócio e a baixa taxa de ocupação dos quartos condo-hoteleiros, esta última, agora, agravada, de forma inesperada, em decorrência da crise financeira imposta pela pandemia do coronavírus.

 

Chama-nos a atenção, no entanto, casos em que a essas causas soma-se uma outra, que diz respeito às dificuldades financeiras do investidor em continuar suportando os altos custos dos contratos, além da própria prestação mensal, premidos pela situação de endividamento das famílias brasileiras e pela performance ruim da economia do País.

 

Tem crescido o número de insatisfeitos na busca de uma solução negociada ou pela via judicial, o que, a nosso sentir, deve-se à recusa do empreendedor ou da bandeira hoteleira em negociar.

 

Com efeito, na esteira da solução dos conflitos individuais, duas são as maneiras pelas quais, a nosso entendimento, os investidores podem romper o vínculo contratual com os empreendedores hoteleiros: a primeira, distratando com a empresa com a qual celebrou a promessa de compra e venda, ressaltando-se que todo distrato requer a aquiescência da outra parte da relação contratual. Não há distrato sem mútuo consentimento; a segunda, não sendo possível romper o liame contratual pela negociação, restará ao investidor ajuizar ação de resolução do contrato, valendo ressaltar-se que, numa ou noutra hipótese, lícito será o investidor pleitear a devolução de percentual incidente sobre o montante desembolsado na aquisição de cota do empreendimento, especialmente nos casos de adimplemento substancial do contrato, forte no entendimento de que o Direito não pode agasalhar o enriquecimento sem causa de um dos contratantes.

 

Para os casos em que for possível o investidor demonstrar e provar a falta de todas as informações das variáveis econômicas do empreendimento, não resta dúvidas de que o Código de Defesa do Consumidor deverá proteger o investidor, o mesmo podendo afirmar-se para discutir a nefanda existência de cláusulas abusivas. 

 

Nem mesmo o contrato de sociedade em conta de participação (sociedade não personificada) que compõe o mix de instrumentos desse instituto, resistiria à incidência do Código consumerista, pois, como visto, a sua natureza jurídica é incompatível com o empreendimento condo-hotel, como já decidido no acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, acima mencionado.

 

Não é demais lembrar, outrossim, que os empreendedores/incorporadores também estão sujeitos às consequências do inadimplemento contratual a que derem causa, uma vez que assumem obrigações perante os investidores, tais como atraso na entrega do prédio no qual vai ser construído o hotel, falta de prestação de contas, cobranças exorbitantes fora da previsão ou da álea contratual, ou decorrentes de repasses indevidos, má escolha do administrador do hotel, dentre outras para exemplificar, resolvendo-se o contrato pela via normal do rompimento do vínculo, como prevista no artigo 475, do Código Civil.

 

Uma das questões mais difíceis para os operadores do direito é a que dizer respeito à possibilidade da resolução do contrato por parte do investidor que confessa a sua falta de condição financeira para pagar as prestações do contrato, nas hipóteses de pagamento parcelado do preço de aquisição da fração ideal.

 

Noutras palavras: é possível o adquirente de cota em condo-hotel propor ação de resolução de contrato em face do empreendedor/incorporador hoteleiro sob a confissão de que não está em condições de suportar os ônus do contrato?

 

A jurisprudência dos nossos tribunais e a doutrina civilista não hesitam em admitir o rompimento do vínculo contratual nas hipóteses puras de compra e venda de unidades autônomas, sob o regime da Lei nº 4.591/64, quando o promitente comprador demonstra a sua incapacidade de continuar pagando as parcelas sucessivas do preço. Trata-se do instituto do inadimplemento antecipado do contrato, que, ainda, não encontra respaldo no Código Civil, sendo fruto da aplicação de política jurisprudencial, que não vê qualquer óbice de natureza ética no desfazimento do contrato antes do seu termo.

 

Nesse mister, impende dizer que não é de onerosidade excessiva de que se trata, uma vez que não se registra apenas o desequilíbrio entre a prestação e a contraprestação contratuais.

 

A propósito, um dos maiores defensores dessa criativa figura jurídica no Direito Civil Brasileiro, em seu pequeno substancioso trabalho sobre o tema[17], Luiz Philipe Tavares de Azevedo Cardoso demonstrou que a insuportabilidade da prestação supera a onerosidade excessiva, porque, segundo ele, o elemento preponderante do problemas são os “aspectos particulares da situação patrimonial do devedor pré-inadimplente”, gerando a impossibilidade física de execução do contrato.

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[17]In Inadimplemento Antecipado do Contrato no Direito Civil Brasileiro”, Malheiros Editores, São Paulo, 2015, p. 30.

           

A chancela jurisprudencial, que autoriza o devedor a pedir a resolução do contrato de maneira antecipada, sem passar pela mora, vem sendo difundida como causa justificadora da resolução, sem qualquer impedimento legal, como registra o jurista citado. 

 

Destarte, em que pese ainda não se registrem nos anais jurisprudenciais resoluções de contrato de condo-hotéis em situações eticamente similares, ao menos que sejam do nosso conhecimento, entendemos ser perfeitamente possível que os investidores se socorram, por extensão, dessa construção doutrinária para romperem vínculos contratuais, mesmo perdendo uma percentual de seu investimento, caso malograda a tentativa de distratar a avença diretamente com os empreendedores hoteleiros.

6. CONCLUSÕES

 

Ante os números da nossa economia de crise e o aumento da escalada de insegurança das metrópoles, em particular a cidade do Rio de Janeiro, onde se concentram grandes empreendimentos hoteleiros, não incorreremos em exagero ou pessimismo ao afirmar que o futuro dos condo-hotéis é, na atualidade, muito pouco promissor para os pequenos investidores, que sonharam um dia com as promessas de obterem rentabilidade e lucratividade em suas aplicações financeiras, porque, no mais das vezes, não foram adequadamente informados de todos os percalços do negócio.  E, é por isso que temos observado a motivação de centenas e centenas de condo-hoteleiros para buscarem uma solução dos seus problemas no Poder Judiciário a fim de, ao menos, recuperarem parte dos prejuízos experimentados.

 

Era de se esperar, contudo, demonstrada a falta de perspectiva de recuperação do mercado, que o Ministério Público ou qualquer entidade de defesa do consumidor legitimada para tal, já tivesse aparelhado ações civis públicas na defesa dos investidores de pequeno perfil, quando ao menos não fosse para extirpar dos contratos (de adesão) de condo-hotel as cláusulas abusivas que neles se contêm.

 

Rio de Janeiro, 25 de janeiro de 2021.

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1. Artigo produzido em 2018 e atualizado em janeiro de 2021.

2. O autor é bacharel em Direito pela UEG, atual UERJ, em 1974; Pós-graduado, com defesa de monografia, em Direito Empresarial pela FGV-RJ, em 2013; Advogado militante em contenciosos cíveis desde 1975; Advogado de carreira e Consultor Sênior aposentado de Petróleo Brasileiro S. A. - PETROBRAS para a qual foi Observador em Contenciosos Internacionais na Corte Federal do Estado de Nova Iorque-EUA e em disputa comercial na Itália pela PETROBRAS, entre outras contendas internas; Advogado-especialista em Direito Imobiliário em Monteiro Borges Advogados Associados, com sede na cidade do Rio de Janeiro, desde 2011; Membro da Comissão de Direito Imobiliário da OAB-RJ, Seccional Barra da Tijuca, desde 2019; Membro da Comissão de Direito Urbanístico e Imobiliário da OAB-RJ desde 2020 e Membro da Associação Brasileira de Advogados – ABARJ desde 2020.

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